(Postarei o conto na íntegra, e também o aúdio para os que preferirem ouvir tal conto narrado pela maravilhosa e espetacular atriz Aracy Balabanian !)
Link para o aúdio:
http://www.youtube.com/watch?v=EQGcCjVz2u4
Ele me bebeu
Clarice Lispector
É. Aconteceu
mesmo.
Serjoca era
maquilador de mulheres. Mas não queria nada com mulheres. Queria homens.
E maquilava
Aurélia Nascimento. Aurélia era bonita e, maquilada, ficava deslumbrante. Era
loura, usava peruca e cílios postiços. Ficaram amigos. Saíam juntos, essa coisa
de ir jantar em boates.
Todas as
vezes que Aurélia queria ficar linda ligava para Serjoca. Serjoca também era
bonito. Era magro e alto.
E assim
corriam as coisas. Um telefonema e marcavam encontro. Ela se vestia bem, era
caprichada. Usava lentes de contato. E seios postiços. Mas os seus mesmos era
lindos, pontudos. Só usava os postiços porque tinha pouco busto. Sua boca era
um botão de vermelha rosa. E os dentes grandes, brancos.
Um dia, às
seis horas da tarde, na hora do pior trânsito, Aurélia e Serjoca estavam em pé
junto do Copacabana Palace e esperavam inutilmente um táxi. Serjoca, de
cansaço, encostara-se numa árvore. Aurélia impaciente. Sugeriu que dessem ao
porteiro dez cruzeiros para que ele lhes arranjasse uma condução. Serjoca
negou: era duro para soltar dinheiro.
Eram quase
sete horas. Escurecia. O que fazer?
Perto deles
estava Affonso Carvalho. Industrial de metalurgia. Esperava o seu Mercedes com
chofer. Fazia calor, o carro era refrigerado, tinha telefone e geladeira.
Affonso fizera quarenta anos no dia anterior.
Viu a
impaciência de Aurélia que batia com os pés na calçada. Interessante essa
mulher, pensou Affonso. E quer carro. Dirigiu-se a ela:
- A
senhorita está achando dificuldade de condução?
- Estou aqui
desde as seis horas e nada de um táxi passar e nos pegar! Já não agüento mais.
- Meu chofer
vem daqui a pouco, disse Affonso. Posso levá-los a alguma parte?
- Eu lhe
agradeceria muito, inclusive porque estou com dor no pé.
Mas não
disse que tinha calos. Escondeu o defeito. Estava maquiladíssima e olhou com
desejo o homem. Serjoca muito calado.
Afinal veio
o chofer, desceu, abriu a porta do carro. Entraram os três. Ela na frente, ao
lado do chofer, os dois atrás. Tirou discretamente o sapato e suspirou de
alívio.
- Para onde
vocês querem ir?
- Não temos
propriamente destino, disse Aurélia cada vez mais acesa pela cara máscula de
Affonso.
Ele disse:
- E se
fôssemos ao Number One tomar um drinque?
- Eu
adoraria, disse Aurélia. Você não gostaria, Serjoca?
- É claro,
preciso de uma bebida forte.
Então foram
para a boate, a essa hora quase vazia. E conversaram. Affonso falou de
metalurgia. Os outros dois não entendiam nada. Mas fingiam entender. Era tedioso.
Mas Affonso estava entusiasmado e, embaixo da mesa, encostou o pé no pé de
Aurélia. Justo no pé que tinha calo. Ela correspondeu, excitada. Aí Affonso
disse:
- E se
fôssemos jantar na minha casa? Tenho hoje escargots e
frango com trufas. Que tal?
- Estou
esfaimada.
E Serjoca
mudo. Estava também aceso por Affonso.
O
apartamento era atapetado de branco e lá havia escultura de Bruno Giorgi.
Sentaram-se, tomaram outro drinque e foram para a sala de jantar. Mesa de
jacarandá. Garçom servindo à esquerda. Serjoca não sabia comer escargots e atrapalhou-se todo com os talheres
especiais. Não gostou. Mas Aurélia gostou muito, se bem que tivesse medo de ter
hálito de alho. Mas beberam champanha francesa durante o jantar todo. Ninguém
quis sobremesa, queriam apenas café.
E foram para
a sala. Aí Serjoca se animou. E começou a falar que não acabava mais. Lançava
olhos lânguidos para o industrial. Este ficou espantado com a eloqüência do
rapaz bonito. No dia seguinte telefonaria para Aurélia para lhe dizer: o
Serjoca é um amor de pessoa.
E marcaram
novo encontro. Destava vez num restaurante, o Albamar. Comeram ostras para
comerçar. De novo Serjoca teve dificuldade de comer as ostras. Sou um errado,
pensou.
mas antes de
se encontrarem, Aurélia telefonou para Serjoca: precisava de maquilagem
urgente. Ele foi à sua casa.
Então,
enquanto era maquilada, pensou: Serjoca está me tirando o rosto.
A impressão
era que ele apagava os seus traços: vazia, uma cara só de carne. Carne morena.
Sentiu
mal-estar. Pediu licença e foi ao banheiro para se olhar ao espelho. Era isso
mesmo que ela imaginara: Serjoca tinha anulado o seu rosto. Mesmo os ossos - e
tinha uma ossatura espetacular - mesmo os ossos tinham desaparecido. Ele está
me bebendo, pensou, ele vai me destruir. E é por causa do Affonso.
Voltou sem
graça. No restaurante quase não falou. Affonso falava mais com Serjoca, mal
olhava para Aurélia: estava interessado no rapaz.
Enfim, enfim
acabou o almoço.
Serjoca
marcou encontro com Affonso para de noite, Aurélia disse que não podia ir,
estava cansada. Era mentira: não ia porque não tinha cara para mostrar.
Chegou em
casa, tomou um banho de imersão com espuma, ficou pensando: daqui a pouco ele
me tira o corpo também. O que fazer para recuperar o que fora seu? A sua
individualidade?
Saiu da
banheira pensativa. Enxugou-se com uma toalha enorme, vermelha. Sempre
pensativa. Pesou-se na balança: estava com bom peso. Daí a pouco ele me tira
também o peso, pensou.
Foi ao
espelho. Olhou-se profundamente. Mas ela não era mais nada.
- Então - então
de súbito deu uma bruta bofetada no lado esquerdo do rosto. Para se acordar.
Ficou parada olhando-se. E, como se não bastasse, deu mais duas bofetadas na
cara. Para encontrar-se.
E realmente
aconteceu.
No espelho
viu enfim um rosto humano, triste, delicado. Ela era Aurélia Nascimento.
Acabara de nascer. Nas-ci-men-to.
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